segunda-feira, 22 de setembro de 2008

El Mosquito

Nada de canecas para um bom vinho, elas estragam o conteúdo.


Um mosquito! O inseto sobrevoa a poça de sangue denso. Sobe e desce em um balé musical. Observo-o. Pousa, levanta vôo, salta, de um canto ao outro, no espaço limitado e rubro. Minha mente não pára. O mosquito agora toma proporções descomunais, parece mais um pássaro agoureiro , desses que se assentam ao lado de cladeirões nas capelas mal assombradas e na vida da gente. E é, então, que revejo tudo.
Noites neste bar em que, religiosamente, sirvo mesas. Neste mesmo bar, passo horas infindáveis. E, numa destas madrugadas quentes, sinto a presença de alguém que, nem sei o porquê , incomoda minha rotina. Clientes, bandejas, canecas e fumaça de cigarro. Bandejas peruanas de prata, canecas transparentes, deixando o líquido vermelho aparente, a seiva da vida. Isso me desperta. Os cigarros, hora ou outra, desprendem odores à menta e canela. Esses são de clientes refinados, mas em sua maioria os freqüentadores são espécimes modestos, bêbados e suados, deixam-me, nauseada. O local é pequeno e úmido, bem ao sabor do descaso. Tudo isto misturado traz ao meu ser um desejo de mudança. Algo para romper a mesmice interna.
E o incômodo está ali, diante de meus olhos, encoberto por uma névoa cinza, ao canto onde a luz quase não penetra. Não vejo seu rosto, mas sinto sua presença como o pulsar de minhas artérias. A silhueta mostra um perfil aristocrático.
Sirvo algumas mesas e sinto um olhar direcionado a mim. Com o canto dos olhos, percebo seu constante mirar, é ele; vem dele. E isso... Ah! Excita-me. Talvez possa acontecer algo de novo, de nobre, de fino, nessa minha cela.
O desejo de tornar um nobre em vassalo permeia meus pensamentos e desejos mais secretos. A falta de altivez causa-me asco mas, por vezes, serve aos meus propósitos. Bem, não sou a única a notar a presença do suposto cavalheiro, outras esperam anciosas um pedido vindo daquele canto do bar. O cenário parece misteriosamente reservado ao cliente e, sem muita demora, um braço ergue-se na penumbra. Grace atende prontamente. Ela caminha até a pequena mesa, abana o ar como querendo dissipar o humo tão concentrado a esta altura da madrugada, tira do avental um lápis e um bloco de anotações. Inclina-se sobre o mármore frio da mesa e ouve o pedido do incógnito cliente. Ao virar-me, buscando decifrar o rosto desconhecido, Grace já está de pés batendo ao chão e sai sem anotar nada. Rosto endurecido. Não resisto e dou risada: talvez uma gracinha ao pé do ouvido, ou um pedido inesperado. Alguns clientes são excêntricos.
Descobri imediatamente o motivo de tanta ira: o ser misterioso solicita ser atendido por outra pessoa. Deseja atendimento da moça esguia, de cabelos longos, claros e lisos; deseja ser atendido por mim. Grace enlouquece, mas logo se conforma. Afinal, tem seus clientes fiéis. É que, por vezes, desejamos o novo, o inusitado.
Parto então, em direção à mesa dele, meu corpo dilata suas veias, sinto o sangue correr por elas como lava de vulcão e meu coração descompassa. Ele - o rosto quase descoberto - estira-se na poltrona alta. Com um ar soberano de desprezo, faz seu pedido.
Ouço-o com atenção. Um leve entorpecimento me atordoa e estimula. O tipo incomum tem clase, sangue nobre. Vê-se em seu semblante agora revelado, linhagem. É isso: possui linhagem. O que faz nesta espelunca? Bom, o importante é servi-lo; um bom serviço é capaz de render muito mais que uma simples gorjeta. E dele decididamente quero além do que pode pensar em me oferecer.
Os olhos têm um verde avermelhado, na certa, irritados pela fumaça; unhas polidas, mas um tanto corroídas; roupas fora de moda, porém com estilo; cabelos à Marlon Brando. Enfim, um homem atraente. Um pequeno sorriso ao retirar-me, retribuído. Lindos dentes brancos.
Peço, junto ao balcão, uma boa garrafa de vinho e exijo a melhor. Os falsificados são para clientes medíocres, além do que o cheiro e o gosto me enojam. O meu pede uma marca especial: Bodega Del Fin Del Mundo. Taça! É o que grito, quando me aparecem com a bandeja e uma caneca. Nada de canecas para um bom vinho, elas estragam o conteúdo.
O bar esvazia gradativamente. Arrumo, com primor, a bandeja prateada com incrustações milenares. Tiro meu avental. Fim de noite e tudo parece mais suave. Com sensualidade, carrego o líquido da sedução. Disponho a garrafa e a taça com delicadeza à mesa. Ele me olha e quase posso sentir seu hálito quente. Sirvo o vinho, que enche a taça e minha boca de água.
Continua fitando-me com seus grandes olhos ruborizados. Eles me despem por inteira.
De repente, sinto uma mão em minha cintura. É o dono do bar, avisando-me que o estabelecimento fechará, portanto somos os únicos agora. Digo para deixar por minha conta, eu mesma fecharei o bar. O destino sorri para mim, e o rangido da porta ecoa trazendo atrás de si um silencio sepucral.
É quando ele toma um gole de vinho como um enófilo. Mas, pelo canto de sua linda boca, escorre uma gota fugitiva. Meu corpo começa a modificar-se. Sinto o arrepio que corre por baixo de minha pele. Piel de Gallina. A insensatez toma conta de mim, é-me natural.
Gesticula o ser, até então intocável. Com o indicador, pede para aproximar-me. No peito, meu vestido negro parece saltar. Chego mais perto, arfando como um animal no cio. Ele abre a boca e o convite é aceito. Mostrando seus lindos dentes, pede-me um beijo.
Olho ao redor. estamos realmente sós, neste momento e, assim, beijo-lhe, limpando, com minha língua, o líquido derramado. Impetuosamente puxa-me ao colo; sento meu corpo leve e rígido sobre suas coxas firmes. O controle é perdido e primitivamente fala mais alto: é o beijo em busca da sobrevivência.
Assustado, tenta afastar-se. É tarde! Mostro-lhe meus caninos, mordendo seu lábio inferior, fazendo brotar a verdadeira seiva da vida. Debate-se. Institivamente quer fugir. Invisto novamente e deixo em sua carne a ferida. Debate-se enquanto me sacio. Todo meu corpo pulsa e pulsa, vou exaurindo suas forças e, numa explosão de êxtase, solto-o. O vinho em seu sangue me faz delirar.
O mosquito! Novamente passa ao meu lado e, num reflexo, esmago-o entre as mãos. A aurora se aproxima púrpura, lavo o sangue. E o mosquito desaparece no espaço ilimitado e já não tão rubro.

Denize Muller
( Livro Negro dos Vampiros - Andross ed. - 2007)

2 comentários:

Kizzy Ysatis disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Kizzy Ysatis disse...

amo muito este conto