segunda-feira, 1 de dezembro de 2008

Vitelas

Ordenou o medo, que se fizesse dos pequeninos, a ceia.

Denize Muller


Micro conto na oficina do Marcelino Freire.
Sabem a quem me refiro?
Tentem adivinhar.

Isadora

Dentro da caldeira,
a massa vai se formando.
Não é pão, nem bolo.
É torta

Denize Muller

quarta-feira, 26 de novembro de 2008

Convite



Lançamento da Revista Trajetória Literária.


Poesia "Qualquer Coisa" por Denize Muller, 2º lugar regional .


O lançamento será no dia 16 de dezembro de 2008, às 20h no Centro Cultural de Suzano, na rua Benjamin Constant, 682 - Centro - Suzano - SP.- No dia do lançamento haverá uma breve fala das autoridades, apresentação dos autores e autoras da revista, uma pequena apresentação da Associação Cultural Literatura no Brasil e em seguida haverá a sessão de autógrafos e distribuição gratuita da revista para o público presente. Também nos blogs:http://www.literaturanobrasil.blogspot.com/http://www.sacolagraduado.blogspot.com/http://www.arteparamudar.blogspot.com/

sábado, 8 de novembro de 2008

A caixa



A caixa


Já fez a caixa?

Tô pensando em reforma,
forma e interferências.
Só sai com um manifesto.

Gira, gira, detetive.
Derrama o líquido primordial
em minha boca, pois minha taxidermia tá alta.

Não sei com que preencher...

É o cão mesmo.
Precisa de um panfleto pronto antes da sete,
pra projetar uma vida sem graça para daqui a 50 anos?


Action Painting.
Claquete.
Capítulo 1, 2, 3, 4, talvez o cinco.
Nada de manter a grandeza oculta.

Isso é inominável e inumerável.
Fica no vacilo pra tu vê.
Chega um intruso
e te rouba o retrato,
o perfil
e a letra p.

Um dia que poderia ser seu, vai ser ex.
Faz uma experiência.
Constrói.

Em cinco minutos?

Espanta os pequenos demônios, cara.
Faz a porra da caixa.
A gente ajuda a encher.

De S a Z?

Se quiser?
Tem um bestiário doméstico.
Tem ratos, porco, leitoa.

Não entendi.
É caixa, ou é arca?

Em nome do profeta Jerônimo!

Vocês acham que é simples assim?

Tu parece meretriz.
É o último dia, desencanta.
É fobia?

Não. Pasmem: Eu ainda sonho!

Tô pirando.
Vou tirar os sapatos, meus pensamentos estão comprimidos.
Tá me dando depressão.
Horas sentados à mesa
vendo a TV mostrando verdades
sobre um artigo16.831.
E o cacete da caixa não sai.


Parecemos doze santos, ou mais.
Sem volta em um elevador,
onde uma falsa virgem,
veste branco com lingerie vermelha.
Dá até pra bater uma punheta.

Bom, entre bananas e casamentos,
a caixa sai ou não sai?
Sou cidadã tenho direito de saber.
Qué pasa señora?
Tá nervosa?

Tu ironia me irrita.
Enquanto corremos em nossa seca,
o menino Frederico brinca
de não querer.
E assassina Quintana.

Podia ser o tal Cruz e Souza.
Se fizesse a caixa
colocava o defunto dentro.

Tá dando fome.
O que comer?
Um frango, quem sabe um pintado.

O contador de histórias
sonha com o quê?

Com um lugar onde as ruas não têm nome.
Os punhos de concreto viram um corrimão.
Com algo que não é meu.

O cara é cheio dos labirínticos.

Faz a caixa.
E manda uma carta pra Albertina que não sabe ler.
Ou quem sabe a uma Perplexa mulher qualquer:
Gilda, Clarice, Dora, Esmeralda, Rita.

Não é melhor a um suicida?

Imagina.
O homem acorda cedo, mas não sabendo o que fazer volta a dormir.
No sonho se lambuza com moscas e
é ofendido por alguém:
De porco, eu?
Acorda e vê.
Um retrato.
Deslumbra a rosa contida na caixa,
mas isso não basta e quer morrer.

E imaginação.
Qual era o principio de tudo?
A caixa.

Um nome preciso de um para fazer.

E aqui as personagens
fortes, fracas, convincentes ou não
sussurram baixinho:
- Oficina literária uma Pandora em criação.


Denize Muller

Aos amigos da oficina. Malucos amaldiçoados por Deus e bonitos por insistência.
Bjs

quarta-feira, 8 de outubro de 2008

ORIENTE-SE OCIDENTE

Nos caos da Babel,
Implosão, explosão.
Quem dentro dele ficou,
Ainda, briga: terra, política, religião.
Quem pro outro lado voou,
Tenta...
Mas, têm a mesma cara turva,
A língua torta
E a vida, por vezes, curta.

Denize Muller

En paz por Amado Nervo

Muy cerca de mi ocaso,
Yo te bendigo, vida
Porque nunca me diste
ni esperanza fallida
ni trabajo injusto,
ni pena inmerecida.
Porque veo al final de mi rudo camino
que yo fui el arquitecto de mi proprio destino
que si extraje la hiel o la miel de las cosas,
fue porque en ellas puse hiel o mieles saborosas.
Cierto, a mis lozanías va a seguir el invierno,
mas tu no me dijiste que mayo fuese eterno
halle sin duda largas las noches de mis penas,
mas tu no pormetiste tan solo noches buenas.
En cambio tuve algunas santamente serenas
! Ame, fui amado, el sol acarició mi faz!
!Vida, nada me deves!
!Vida, estamos en paz!

É assim que me encontro agora, em paz.

quinta-feira, 2 de outubro de 2008

É o cão

Estou cansada e dentro de minha vadiagem, a vertigem é andar de quatro.
Sim, quatro patas, que em tempos de ira,
Jogo no ar pra ver onde vão bater.

Na vitrine, exposta, está minha carne.
Abatida! Em ganchos perfumando a pele, invertida e rósea.
Gasta pelo tempo e pela memória.

É de quatro que me enrabam, dia após dia. (sem dó, nem abraço).
Tentando me fazer ouvir,
O que não arde mais.

Cada um que chega, tem faca afiada.
Escolhendo a parte mais apetitosa,
Fazendo troça, vão cantando até eu gemer.

Mas, há dias em que me canso, de ser manequim.
Neste açougue-butique.
Onde estou avestruz; cabeça pra baixo e traseiro assado.

Aí, caros amigos, eu guardo o rabo,
Calço as patas, meto a cara pra cima:
E ensurdeço o primeiro que me emputecer.

Denize Muller

domingo, 28 de setembro de 2008

DESÍGNIOS

ELA ESTAVA ALI, COMO EM TANTAS OUTRAS NOITES. Sentia que sempre estivera assim, ali. Nunca tivera consciência do passado e nem do futuro. Só o ali lhe era familiar, a rua e a noite, companheiras dos que querem esconder-se atrás de suas máscaras.

Dailza era seu nome. Nem grande e nem pequena, cabelos longos, rebeldes e avermelhados pela tinta barata que usava. Possuía um olhar de culpa secular. Trabalhava ali todas as noites, como se lhe fosse imoral fazer qualquer outro tipo de ofício.

Aliás o que é moral ou imoral? Ela não podia saber como uma simples letra pode mudar o significado de uma palavra. Amoral, fora da noção de moral ou de seus valores. Imoral, devassa, libertina. Dailza enquadrava-se aqui. Usava a moralidade somada ao charlatanismo para atingir a quem, ou ao quê lhe interessava. Às vezes, pagava favores com seu corpo, um simples carreto era justificável. Os que lhe conheciam diziam -Coitada.

Nunca fora amada. Fizera escolhas e não podia concretizá-las por isso, usava e era usada, sempre com um apelo sexual, como uma espécie de sobrevivência; estava disponível. Os seus pseudo-amores comentavam: - Zumbis... Todos se tornam zumbis. Morte em vida, levando anos para recuperar-se e perceberem que, a vida ao lado dela seira uma tortura; um engano após o outro. Ela sempre enganava. Sua fala mansa, cara de santa, seduzia homens, fazendo-se de insatisfeita com a vida que levava.

Com seu trabalho nortuno conseguira alguma independência, mas preferia a comodidade de uma pensão. Lá lhe serviam e a faziam sentir-se em casa. Afinal, precisava manter as aparências. Escolhera como refúgio uma pensão familiar, dirigida por um casal de velhinhos espanhóis. quase surdos e cegos. Ela podia levar seu clientes sem ser notada. Sempre justificava a presença de algum homem, como sendo o noivo, o amigo, o irmão.

A quem ela atendia? Quais os tipos? Todos que se encaixassem no esteriótipo do carente-inseguro-necessitado, ou muito confiante; pois esses tipos sentem-se facilmente atraídos por mulheres que estão à disposição para ouvir e dar a qualquer hora. Ela só não podia à luz do dia, era perigoso. Eram jogos teatrais. Agia tal qual uma artista, afinal vivia disso. Dependia disso!

Em determinado tempo de sua vida resolveu mudar. Foi para os classificados, no começo retinha ora ou outra o olhar vnos anúncios de garotas e garotos de programa, o vício era difícil de eliminar, contudo um anúncio lhe chamou a atenção: ofereciam vagas para garçonetes em um pub. Resolveu verificar.

O local tinha um ar místico, de coisa mal acabada ou por reformar... Na verdade, necessitava de uma reforma. Estava vazio. entrou e logo um homem apareceu na penumbra. O silêncio imperava.

A silhueta na meia escuridão, não lhe deixava ver nitidamente quem era, mas conseguia perceber um formato de corpo quixotesco. E isso despertou-lhe o desejo.

Desejo de reviver amores perdidos, ou melhor, que nunca foram tidos. De eliminar o desprezo e a indiferença que os homens lhe ofereceram durante anos. Assim em questão de pouco tempo recordou momentos amargos, frustrantes e que gostaria de apagar.

Resolveu falar primeiro, disse ao que vinha. O homem foi aproximando-se e ao chegar ao pequeno faixo de luz, ela pode decifrar sua fisionomia, que susto ao reconhecer neste homem, um caso do passado. Dentro de tanots amantes, este lhe causava certo torpor. Não por que chegase a lhe prometer algo, ou a tratara com respeito, ou mesmo carinho, somente porque o que é proibido, imoral, engorda nossa imaginação. E ela, imaginava-se, na época, com dotes para prendê-lo. Puro engano, ele escoregava de suas mãos a cada trepada. Depois do gozo satisfeito, aquela sensação de uso a dominava. Trepava e sumia. Traindo a cumplicidade do momento. Um usurpador! Sabia bem que para uma noite qualquer um serve, mas para um vida inteira só os eleitos. Ela o elegera, mas ele não.

Ela o encarou sorrindo. Ele não a reconheceu.

Ficou em silêncio e num lampejo decidiu o que faria se estava ali porque decidira mudar de vida, deveria mudar de verdade. Como? Vingando-se! Nesta noite reverteria tudo, esa figura peculiar e familiar seria a ponte de vingança de um passado aniquilado. Enquanto seus pensamentos mórbidos, maliciosos e calculados formavam-se, o espécime, como um animal, esgueirava seu corpo mal -intensionado para junto do dela. Ela pede para ir ao banheiro, precisava limpar-se, na noite anterior dormira cansada e nem tivera coragem de banhar-se, além disso, tinha algo em mente.

O homem finalmente disse uma palavra, indicando a direção.

Ao voltar encontrou-o sentado, tomando um líquido vermelho, sua taça já a esperava na mesa. Convidando-a, puxou uma cadeira para que ela pudesse sentar-se ao seu lado. Ele lhe oferece a taça.

Conversaram um pouco. O home provavelmente tinha seus pensamentos. Ela, com sua figura chifrim, servia para o serviço. Pagaria pouco. Quem sabe até, em espécie. Troca de favores. A vadia serve, ele sabia. Todos reconhecem essas mulheres, de repente querem mudar de vida, ma no fundo os instintos, o vívio e o hábito falam mais altos. Era vadia. Poderia até não contratá-la, mas pagaria a viagem até ali. uma boa trepada, para que não se perca a viagem. Ria-se. Ela fazia que nã percebia o sorriso sarcástico que ele possuía.

O homem então se levantou, saindo por um instante. Dailza aproveitou para torcar o líquido das taças. Nada de gestos aleatórios, sabia o que queria. Durante sua vida encontrara um homem que lhe servira durante anos e ela até lhe tentara ser fiel, nunca se entregando a outro com paixão, mas ele não era homem suficiente para ela. Gostava mesmo era dos que tinham instintos animais, iso era o que queria. Esse era como uma mulher, cheio de sentimentos e emoções, uma "biba" pensava, nunca o vira como Homem. Cultivara-o por anos, só para não se sentir só e não se lembrar de seu verdadeiro desejo. Até acreditava ser solteirona, por ter perdio muito tempo com esse ser afeminado. Nunca saira da vida, pois ele não lhe garantia orgasmos múltiplos, não lhe dava a segurança necessária para sobreviver aos entraves que uma longa vida podia oferecer. O macho a sua frente, lhe era, o oposto deste ser. Viril!
Os pensamentos são interrompidos, o cavalheiro da triste figura volta ao salão. Sentou-se e nem percebeu que algo fora mudado. A conversa entre ambos reinicia e ao final o homem a contrata. Um brinde é anunciado para comemorar o acordo. Erguem-se as taças, os olhares se cruzam e o gole fatal é dado.
O homem começa a sentir-se entorpecido, agora ela ri de forma sarcástica e sente prazer ao vê-lo rendido. Ele não sabe muito bem o que está acontecendo, sua sanidade parece perder-se, seu corpo descontrolado. Suas veias saltam. Ele a agarra embriagado de desejo. Trepam. E ao fim ele sente sede, uma sede inexplicável. Deseja mais e repete a dose. ela está satisfeita, tudo muito rápido e sem amor, como fora sua vida inteira, quase se sente deseja com toda a loucura que ele sustenta. Que nunca se sacia e ele implora que lhe tirem aquela maldita sede. Ela sem titubear lhe oferece outra taça. Ele se lambuza vertiginosamente, e em grunhidos questiona o que ela colocar no vinho. Ela ri mais uma vez. Iniciara um ritual para executar sua vingança.
Ele fica exausto. Não pode lhe oferecer mais nada. Ela se aproxima, e seu sorriso é escancarado revelando portuberantes caninos que são cravados no dorso dele. Suga-lhe o que pode. Goza e chora. Novamente e secularmente está só. Sabe que, sua sina é viver só. Finaliza o ritual de vingança. Joga o resto da taça no rosto dele, forçando a inebriar-se mais de seu sangue menstrual. Um rito herdado da mãe de todas por séculos e séculos.
O homem desfalece. Saciado. Anestesiado. Não tem noção de nada, não poderia mais viver como vivia e morre para essa vida. E ela, ela não estava mais ali.
Denize Muller ( Folhas ao vento - Andross Ed. 2007)

sexta-feira, 26 de setembro de 2008

Sem título, sobre papel 01x10.

Estou lúcido e louco.
Já não sei mais brincar.
O urso, articulado, tem a cabeça arrancada.
Pela janela, as folhas, o vento insiste em bulir,voltam desarrumadas ao mesmo lugar.
O guarda-roupa de portas semi-abertas tem algo a me dizer.
Medo.
Não é de minha loucura e sim,
de minha lucidez;
grávida de uma herança jacente, de uma linguagem reta, polida
e emparedada.

Denize Muller Declamando no Projeto Hip Hop em Cena- Sarau Ritmo e Poesia. Galeria Olido 27/09/2008.

terça-feira, 23 de setembro de 2008

Elevador.

Não há poesia no elevador.
Outras coisas há.
Ela arruma o sutiã,
Retoca a maquiagem,
Estala o elástico da calcinha,
Enfiado na bunda.
DESCE!
Ele verifica a gravata,
Ajeita a mala,
Põe o nariz no sovaco,
Examina os dentes.
DESCE!
Mas, poesia?
Há outras coisas.
Se o horário os junta:
O olhar se cruza.
A saia é curta.
A pressa é assaz.
No botão é mão na mão.
PÁRA!
Beijo escarnado.
Abraço.
Encoxo tarado.
SOBE!
A saia,
A blusa,
O pau.
Mas poesia não há.
Há química, cabos e roldanas.

Denize Muller


(Uma das 70 poesias indicadas pela Comissão Julgadora para fazer parte do livro de TALENTOS. Foi selecionada entre 1.252 inscritas no concurso www.talentos.wiki.br/poesia.php).

segunda-feira, 22 de setembro de 2008

El Mosquito

Nada de canecas para um bom vinho, elas estragam o conteúdo.


Um mosquito! O inseto sobrevoa a poça de sangue denso. Sobe e desce em um balé musical. Observo-o. Pousa, levanta vôo, salta, de um canto ao outro, no espaço limitado e rubro. Minha mente não pára. O mosquito agora toma proporções descomunais, parece mais um pássaro agoureiro , desses que se assentam ao lado de cladeirões nas capelas mal assombradas e na vida da gente. E é, então, que revejo tudo.
Noites neste bar em que, religiosamente, sirvo mesas. Neste mesmo bar, passo horas infindáveis. E, numa destas madrugadas quentes, sinto a presença de alguém que, nem sei o porquê , incomoda minha rotina. Clientes, bandejas, canecas e fumaça de cigarro. Bandejas peruanas de prata, canecas transparentes, deixando o líquido vermelho aparente, a seiva da vida. Isso me desperta. Os cigarros, hora ou outra, desprendem odores à menta e canela. Esses são de clientes refinados, mas em sua maioria os freqüentadores são espécimes modestos, bêbados e suados, deixam-me, nauseada. O local é pequeno e úmido, bem ao sabor do descaso. Tudo isto misturado traz ao meu ser um desejo de mudança. Algo para romper a mesmice interna.
E o incômodo está ali, diante de meus olhos, encoberto por uma névoa cinza, ao canto onde a luz quase não penetra. Não vejo seu rosto, mas sinto sua presença como o pulsar de minhas artérias. A silhueta mostra um perfil aristocrático.
Sirvo algumas mesas e sinto um olhar direcionado a mim. Com o canto dos olhos, percebo seu constante mirar, é ele; vem dele. E isso... Ah! Excita-me. Talvez possa acontecer algo de novo, de nobre, de fino, nessa minha cela.
O desejo de tornar um nobre em vassalo permeia meus pensamentos e desejos mais secretos. A falta de altivez causa-me asco mas, por vezes, serve aos meus propósitos. Bem, não sou a única a notar a presença do suposto cavalheiro, outras esperam anciosas um pedido vindo daquele canto do bar. O cenário parece misteriosamente reservado ao cliente e, sem muita demora, um braço ergue-se na penumbra. Grace atende prontamente. Ela caminha até a pequena mesa, abana o ar como querendo dissipar o humo tão concentrado a esta altura da madrugada, tira do avental um lápis e um bloco de anotações. Inclina-se sobre o mármore frio da mesa e ouve o pedido do incógnito cliente. Ao virar-me, buscando decifrar o rosto desconhecido, Grace já está de pés batendo ao chão e sai sem anotar nada. Rosto endurecido. Não resisto e dou risada: talvez uma gracinha ao pé do ouvido, ou um pedido inesperado. Alguns clientes são excêntricos.
Descobri imediatamente o motivo de tanta ira: o ser misterioso solicita ser atendido por outra pessoa. Deseja atendimento da moça esguia, de cabelos longos, claros e lisos; deseja ser atendido por mim. Grace enlouquece, mas logo se conforma. Afinal, tem seus clientes fiéis. É que, por vezes, desejamos o novo, o inusitado.
Parto então, em direção à mesa dele, meu corpo dilata suas veias, sinto o sangue correr por elas como lava de vulcão e meu coração descompassa. Ele - o rosto quase descoberto - estira-se na poltrona alta. Com um ar soberano de desprezo, faz seu pedido.
Ouço-o com atenção. Um leve entorpecimento me atordoa e estimula. O tipo incomum tem clase, sangue nobre. Vê-se em seu semblante agora revelado, linhagem. É isso: possui linhagem. O que faz nesta espelunca? Bom, o importante é servi-lo; um bom serviço é capaz de render muito mais que uma simples gorjeta. E dele decididamente quero além do que pode pensar em me oferecer.
Os olhos têm um verde avermelhado, na certa, irritados pela fumaça; unhas polidas, mas um tanto corroídas; roupas fora de moda, porém com estilo; cabelos à Marlon Brando. Enfim, um homem atraente. Um pequeno sorriso ao retirar-me, retribuído. Lindos dentes brancos.
Peço, junto ao balcão, uma boa garrafa de vinho e exijo a melhor. Os falsificados são para clientes medíocres, além do que o cheiro e o gosto me enojam. O meu pede uma marca especial: Bodega Del Fin Del Mundo. Taça! É o que grito, quando me aparecem com a bandeja e uma caneca. Nada de canecas para um bom vinho, elas estragam o conteúdo.
O bar esvazia gradativamente. Arrumo, com primor, a bandeja prateada com incrustações milenares. Tiro meu avental. Fim de noite e tudo parece mais suave. Com sensualidade, carrego o líquido da sedução. Disponho a garrafa e a taça com delicadeza à mesa. Ele me olha e quase posso sentir seu hálito quente. Sirvo o vinho, que enche a taça e minha boca de água.
Continua fitando-me com seus grandes olhos ruborizados. Eles me despem por inteira.
De repente, sinto uma mão em minha cintura. É o dono do bar, avisando-me que o estabelecimento fechará, portanto somos os únicos agora. Digo para deixar por minha conta, eu mesma fecharei o bar. O destino sorri para mim, e o rangido da porta ecoa trazendo atrás de si um silencio sepucral.
É quando ele toma um gole de vinho como um enófilo. Mas, pelo canto de sua linda boca, escorre uma gota fugitiva. Meu corpo começa a modificar-se. Sinto o arrepio que corre por baixo de minha pele. Piel de Gallina. A insensatez toma conta de mim, é-me natural.
Gesticula o ser, até então intocável. Com o indicador, pede para aproximar-me. No peito, meu vestido negro parece saltar. Chego mais perto, arfando como um animal no cio. Ele abre a boca e o convite é aceito. Mostrando seus lindos dentes, pede-me um beijo.
Olho ao redor. estamos realmente sós, neste momento e, assim, beijo-lhe, limpando, com minha língua, o líquido derramado. Impetuosamente puxa-me ao colo; sento meu corpo leve e rígido sobre suas coxas firmes. O controle é perdido e primitivamente fala mais alto: é o beijo em busca da sobrevivência.
Assustado, tenta afastar-se. É tarde! Mostro-lhe meus caninos, mordendo seu lábio inferior, fazendo brotar a verdadeira seiva da vida. Debate-se. Institivamente quer fugir. Invisto novamente e deixo em sua carne a ferida. Debate-se enquanto me sacio. Todo meu corpo pulsa e pulsa, vou exaurindo suas forças e, numa explosão de êxtase, solto-o. O vinho em seu sangue me faz delirar.
O mosquito! Novamente passa ao meu lado e, num reflexo, esmago-o entre as mãos. A aurora se aproxima púrpura, lavo o sangue. E o mosquito desaparece no espaço ilimitado e já não tão rubro.

Denize Muller
( Livro Negro dos Vampiros - Andross ed. - 2007)

à M.A.



Imagem de Capa: " Sem título" ( detalhe)
2005 - Juliana Garcia óleo sobre tela 70x90cm.
Mulher envolta pelo feminino, Juliana Garcia ( 1977) artista plástica, paulista de nascimento, hoje vive e trabalha em São Paulo.
Em teias, desenrola aos nossos olhos toda sensibilidade e cultura desse Universo.
Não há marcas, nem molduras seus trabalhos ultrapassam esses limites:
à M.A.
Da raiz forte,
Banhada em esperança,
Brotam os frutos
Estendidos na Terra.
Como abraços, em abraços,
Envoltos em luz,
Deslizam em dança
De querência e espera.
Egressos ao norte,
Sul, leste, oeste; descansa!
E ao centro se voltam.
De olhos e corpos em eira,
Não seca, apenas espreita,
Os filhos da Era.
Denize Muller
( REF- UFSC. vol. 15n.2/2007)

Herança




Deixaste a porta aberta,
Trouxeste através dela um embrulho
Amargo, o cheiro alerta,
Perdendo a dama assim o orgulho.
Tocaste o corpo e a alma,
Mãos incertas, mas precisas.
Entrando de maneira calma,
Levaste consigo doces brisas
Da dor não queres o lodo
Semelhante ao que ofereceste.
Negando o próprio engodo,
O embrulho amargo esqueceste.
Todo amor fez-se engenhoso,
Medido em tempos irreais.
Executando esta sentença
Tu, algoz, não ouviste meus ais!
De semita me figuraste,
Dando cabo à esperança.
Talhando em meu corpo a enfermidade, partiste,
Tocando a mim a tua herança.

Denize Muller


( Amor Lúbrico - Textos para serem lidos na cama - 6º lugar no 1º Concruso de Literatura Erótica de Suzano -




Seqüelas de um engano



a todos que amam e enganam-se dizendo que não.


Eu sou o luto...
sou o que sobre das ruínas de um viver,
a dor do mundo,
Infinita angústia,
na procura de uma porta que me leve para longe
desse ser.

Sou aquilo que não pode mais,
sou sombra,
sou pó,
sou nada.

A fera que há em mim, urra, berra,
grita desenfreadamente! E a alma
sangra...

Por quantas vezes mais provarei do amargo de sua boca, do fel do seu ser?

Por quantas vezes mais o vazio?
O domínio, a liberdade, a dor de ser quem sou?
A carne que carrega essa alma adoece,
apodrece
e nada.

Continuo viva.
Alguém pode explicar!?
Todo pranto derramado se verte em sangue...
e procuro
mais.

Denize Muller
( Prática de escrita A poesia: um estímulo à percepção e à criatividade. Andross Ed.)

quarta-feira, 17 de setembro de 2008

Qualquer coisa...

São cálidas as feridas, elas...
surgem e urgem alívio
das dores infindáveis
e mal resolvidas.
Sobras que ainda restam,
desta dor que não sara
e não cessa. Atestam;
imagem interior refletida.
Aquela em que não acreditas
que o corpo pede expulsão.
Daquilo que o crivo...
jamais teve noção.
E tendo a contenda no peito,
clama o tronco por razão.
E não dando ouvidos direito,
sofre alma, sofre coração!
Demanda já instaurada,
causando grande aflição.
Não sendo a alma sã...
como pode o corpo são?
Assegura, então, a vingança
das injúrias recebidas.
Profanando a morada;
entregue a ti, oh, querida?
Estando em estado mortal,
recordas Psique. Busca,
incessante; não consegues
compreender?
Vive plena tua vida.
Respeita o teu ser.
Porque não encontrarás até a saída,
outra forma de viver.

(2° lugar no Concurso de Literatura de Suzano)

La Mancha de Denize

Poesia em palavras e tudo mais que vem da dor e da noite mal dormida.
Quixotes e Paredes.
Eros e Gardel.
Aqui Denize Muller (sem saber ainda) deixa sua Mancha
de uma poesia que nasce pronta.

Claudio Brites